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Aqui tudo é fictício e tudo é de minha autoria. Tudo pode ser partihado, com referência à origem. Não me responsabilizo por pensamentos, palavras ou obras dos meus personagens.
O que eu mais gosto no dia da morte de porco é quando vou levar uns bocadinhos de carne fresca aos vizinhos. Não sei, lembro-me de quando somos nós que recebemos. No dia da morte de porco, e nos dias que se lhe seguem, até as chouriças estarem enxutas, bem que me enjoa a carne, aquele cheiro que está por todo o lado.
Mas quando já passou esse cheiro e alguém nos vem trazer uns bocadinhos de carne fresca, ui!, como sabe bem!
Eu, a parte que gosto mais do porco é o presunto. Em fresco é da cachola. Da cachola e do sangue, quando fica com muitos buraquinhos. Os bofes não consigo comer, acho aquilo mole, parece borracha. O rim bem que me amarga. Os torresmos só consigo comê-los dois ou três dias depois de fritos, e quando ficam muito torrados também não aprecio. O meu pai gosta muito dos de riçol, lá em casa só ele é que gosta. A mim bem que me sabem a tripas.
Hoje levantei-me muito cedo, ainda de noite. Gosto de ver o meu pai acender o lume para estar pronto a dar fogo aos tojos. Os homens foram chegando ainda não se via. Foram-se juntando à volta do fogo. Esfregam as mãos e passam-nas de vez em quando por cima das lavaredas.
«Moços, aqueçam bem as mãos antes de pegar no bicho, que com esta geada qualquer descuido faz logo um arrepelão na pele.» avisava o meu pai.
O senhor Aldemiro foi o último a chegar. Ele mora no Vale, de lá aqui a Santana da Charneca, pela estrada nova, ainda são bem uns quatro quilómetros. Veio na bicicleta a motor, uma Zündapp de três. Foi encostá-la à parede do eirado da cisterna e eu fui atrás para a ver bem.
«Jaime, tem que se ter muito cuidado com as faúlhas. Aqui já fica à abrigada. Quando o teu pai te comprar uma mota já sabes que gasolina e fogo não se dão bem. Sempre lá longe.» ele gosta muito de se meter comigo, e eu gosto muito dele. Ele diz coisas que mais ninguém diz, e gosta de me ensinar, mesmo na brincadeira ensina.
O senhor Aldemiro esteve na tropa com o meu pai. É guarda-rios, mas não tem farda, anda sempre vestido como os outros homens. Nem sei o que é que ele guarda, a ribeira precisa de ser guardada? Um dia destes pergunto-lhe.
Ele desatou uma saca de serapilheira daquelas que usam para ensacar as alfarrobas, que trazia atada com um baraço ao lado do selim da bicicleta e foi ter com os outros ao pé do fogo. Eu fiquei a ver a bicicleta, mas o meu pai chamou-me logo.
«Jaime, traz lá a garrafa e o prato dos bolos.» Lá fui eu à cozinha buscar a garrafa da aguardente e um copinho pequenino, e um prato com bocadinhos de costa de rolão que a minha mãe fez ontem junto à cozedura. Quando eu era pequeno não conseguia comer o pão mole, enrolava-se-me na boca e não o conseguia engolir, só uns dois dias depois. Uma vez a minha mãe descuidou-se e deixou a massa muito tempo a levedar, essa cozedura custámos a comê-la, ninguém gostava nem do cheiro. Na costa de rolão a minha mãe põe um bocadinho de açúcar, pouco, mas se não ficar bem cozida também não a consigo comer.
O senhor Aldemiro desembrulhou as facas que trazia na saca e pôs-se a experimentá-las. Primeiro desembainha de um invólucro de cortiça uma comprida e pontiaguda. Experimenta a ponta e os dois gumes passando a palma da mão e uma unha. Depois desata as outras duas, que vinham atadas uma à outra ambas com os gumes enterrados num bocado de cortiça, uma de um lado e a outra do outro, e que ele diz que foram feitas de facas de corticeiro. Uma maior, que vai servir para talhar a papada, os toucinhos, as barrigas, os presuntos e as manetas, e a outra mais pequena para abrir, desmanchar, descarnar, etc. Experimenta os gumes de ambas. Tira da saca uma pedra de areia vermelha e dá um afiamento fino a cada uma.
«Aldemiro, não matas o bicho?»
«Foi para isso que cá vim.», e ri-se com o trocadilho.
«Deixa-te de piadas.», o meu pai também ri.
«Venha lá o copo.»
Bebe a aguardente de um sorvo e recusa o prato da costa.
O meu pai abre a porta do pocilgo e chama o porco, que não vem.
«Dez arrobas.» palpita o Constantino.
«Eu aposto nove.» discorda o Aldemiro. «E tu, Pedro, quantas achas?»
«Eu queria que ele fosse às dez, mas o sacana amarroou. Debotou os figos, esteve aí quase uma semana a perder peso. Talvez umas nove e meia.»
E assim seguiram com os palpites enquanto o cevão não se decidia a deixar a pensão.
Há porcos que saem bem, mas há outros que são uma carga de trabalhos para sair. Este não parecia para aí virado. O meu pai foi dentro do pocilgo com uma varinha de trovisco.
«Não lhe batas com força senão ficam os vergões no presunto. Dá-lhe só uma pancadinha e dá-lhe um grito assim de repente.»
Agarraram-no cá fora e atiraram-no ao chão. O senhor Aldemiro laçou-lhe um baraço ao focinho para evitar que ele mordesse. E levaram-no em peso, segurando pelas pernas, para cima da salgadeira de madeira, que, emborcada ao contrário, servia de bancada.
«Jaime, vai dizer à tua mãe para trazer os tachos para aparar o sangue! Tu gostas de sangue, sacana!»
A minha mãe traz os dois tachos. Um com vinagre para não coalhar, que é para as chouriças. O outro é para cozer para o almoço.
«Vizinha Almerinda, pegue aqui neste que é para as chouriças, que eu pego no outro.»
«Está bem, quando chegar diga.»
«Já chega para as chouriças. Vá, que eu ponho este.»
«Mexe bem, Olinda, para não ficar encortiçado.»
«Mexa bem, mãe!» atrevi-me eu.
«Já a formiga tem catarro?», e riram-se todos. «Eu sei muito bem, o sangue para cozer tem que ser bem mexido, para ficar com buraquinhos.»
Confesso que não entendi aquela da formiga tem catarro, mas agora não é altura de perguntar.
«Vamos deitá-lo para chamuscar. Vá, upa!», e tiram o porco a peso de cima da bancada improvisada e estendem-no no chão para chamuscar.
O meu pai vai pegando nos tojos com a forquilha, passa-os pela fogueira, que já arde desde há um bom bocado, e vai passando o fogo sobre o porco enquanto o Chico Joina vai raspando a pele com a parte mais áspera de um bocado de cortiça e o senhor Aldemiro com uma faca nas partes mais difíceis.
«Acala bem aqui nas unhas da frente, Pedro!», quando acha que já é suficiente manda o meu pai afastar o tojo e torce cada uma das unhas à mão até ela descolar.
«Faça bem a barba da sua papada, Chico!», o senhor Aldemiro fazia sempre estes trocadilhos. Era a sua papada, as suas orelhas, as suas patas.
«Pedro, vê lá se queres mais fogo. Tu é que sabes como é que queres.», e o meu pai vinha dar mais um pouco de fogo sobre a pele dos presuntos, do toucinho, da papada, das manetas, ele é que decidia quando achava que era suficiente.
Quando o meu pai achou que já estava bem chamuscado começaram a lavagem. Aí já me calhou a mim ajudar. O meu pai mergulhou o bombinho todo na cisterna, depois tapou a ponta com um rolha de cortiça, puxou a ponta do bombinho até junto do porco, tirou a rolha e a água subia da cisterna pelo tubo e escorria.
«Vá, Jaime, faz alguma coisa para ganhares o almoço. Tapa aqui a ponta com o dedo para não estares sempre a pôr e a tirar a rolha e à medida que te pedirem vai deitando água.»
Eu fiquei todo concho com o meu trabalho. Era a primeira vez que o meu pai me confiava aquela tarefa. De vez em quando a minha mãe ou a vizinha Almerinda vinham com um tacho para encher do bombinho.
Quando o meu pai deu por terminada a lavação, pegou ele no bombinho e lavou muito bem as tábuas da salgadeira, enrolhou o bombinho, e disse-me que já não era preciso mais água. Senti-me um bocadinho diminuído no meu orgulho, pois eu sabia muito bem que já não era preciso mais água. Nunca tinha feito aquilo mas todos os anos via fazerem. Normalmente era o Chico Joina que fazia. Era trabalho de homem.
Puseram uns bocados de tijolo de cada lado do porco para este se manter de costas, e o senhor Aldemiro começou a abri-lo. Começou por marcar um ponto no peito do porco com a faca de matar, depois de uma vez só, com a outra faca, abriu um golpe não muito profundo até à veia da urina, depois outro até ao fim da barriga. Depois voltou lá à frente e abriu outro do peito para a frente.
«Senhor Aldemiro, este ano queria experimentar a desmanchar a parte da frente.»
«Oh Chico, pois está bem, mas primeiro deixa-me fazer a moela.»
Quando o senhor Aldemiro cortou o véu que deixa as tripas à mostra eu tive que me afastar, não é por nada, é que não aguento o cheiro. Fui ver a Zündapp, estive lá um bom bocado, só voltei quando eles já estavam a talhar os presuntos e as manetas, com o meu pai a dar o risco. O meu pai é muito cioso com os presuntos e as manetas.
Já sabia que a minha mãe me ia mandar levar uns bocadinhos de carne àquelas vizinhas de sempre, entretive-me a brincar com o borralho que tinha sobrado da fogueira. Peguei na varinha de trovisco que o meu pai tinha cortado para bater no porco e comecei a bater com ela nas brasas. Saltava faúlhas, parecia os fogos que faziam na altura da festa das azinheiras. Tanto bati que uma brasa saltou-me para dentro da bota esquerda. Agarrou-se ao peúgo de nylon de tal maneira que, enquanto não consegui descalçar a bota, queimou-me que até vi estrelas. E não queria era que ninguém desse por isso. Andava com todo o cuidado para não notarem que eu coxeava, de cada vez que a queimadura roçava no peúgo doía que se fartava. Como vi a vizinha Almerinda uma vez pôr azeite numa queimadura, fui à casa de despejo, pus-me em cima duma cadeira para alcançar o pote, tirei o púcaro com cuidado e pus azeite. Melhorou, mas mesmo assim doía muito.
Quando acabaram de desmanchar o porco ainda era cedo para o almoço. Costumava ser nesta altura que a minha mãe me mandava ir levar os taleigos com as tigelas de carne à vizinhança. Embora eu estivesse desejando que ela não me mandasse, porque a queimadura ainda me doía muito, mas como sabia que não havia maneira de me escapar resolvi ir perguntar-lhe se os taleigos já estavam prontos.
«Hoje quem vai é a Carolina!», até pensei que fosse milagre de Deus, embora eu não fosse muito de rezas.
Para disfarçar ainda protestei: «Mas a Carolina ainda é pequena, ela não pode com os taleigos.»
E ela: «De pequenino é que se torce o pepino. Ela já tem seis anos. Não leva tudo de uma vez leva em duas ou três vezes.»
Mas o pior estava para vir: «Para ti tenho outro frete.», fiquei com receio. «Lembras-te daquela senhora que no verão passado ofereceu a vez à mãe na pedra do lavadouro?», aqui fiquei mesmo aflito.
«Já sei. A senhora Henriqueta. A mãe do Carlos.»
«Essa mesma. Sabes ir ter à casa dela?»
Tive vontade de dizer que não, mas a casa era tão fácil de encontrar. A vereda que nós levávamos quando a minha mãe ia lavar à ribeira passava mesmo na rua dela. Resolvi aguentar firme.
«Depois do almoço vais lá levar-lhe um taleigo que eu ainda vou arranjar.»
E eu timidamente: «E sabe-se lá se está alguém em casa?»
E ela implacável: «Está lá sempre alguém, se não estiver ela está a velhota, a sogra, que essa nunca de lá sai.»
Foi o meu pior almoço de morte de porco. O pé doía. Por breves momentos ainda me passou pela cabeça dizer-lhe, ela, se calhar, nem me batia, mas eu sou muito orgulhoso.
A dor no pé a pouco e pouco foi adormecendo, não sei se foi do azeite. Eles a comerem todos animados e eu a comer calado, sem apetite.
«Jaiminho, estás tão calado, homem, estás doente ou estás a pensar na namorada?», o senhor Aldemiro metia-se sempre comigo. Fingi que me ria.
Depois, à medida que a dor no pé ia adormecendo mais, fui-me lembrando das coisas que às vezes ouvia eles contarem quando se ficava à noite ao pé do fogo. Do tempo da guerra em que uma sardinha dava para três. Dos meses e meses a comer papas de milho. Das idas à ceifa ao Alentejo, em que ceifavam de sol a sol e comiam sopas ao almoço e ao jantar.
O meu orgulho de homem foi crescendo, à medida que amornecia a dor no pé.
Quando a minha mãe me deu o taleigo eu peguei na mota, que era uma cana que eu pegava com uma mão numa ponta e a outra na outra a fingir de guiador de bicicleta a motor. Até tinha um punho que rodava para acelerar, e as manetes como se fosse o travão e a embraiagem. Segurei o taleigo junto ao punho esquerdo para deixar a mão direita livre para acelerar e saí correndo pela vereda abaixo, a meter mudanças com o barulho que fazia a imitar o motor. Direito ao barranco das Tabuas, donde havia de subir em ziguezague até à altura donde já se havia de avistar a ribeira do Gralho lá ao longe entre os canaviais e a casa da senhora Henriqueta uns trezentos metros mais acima.
«Tem cuidado! Não partas a tigela!», ainda ouvi a minha mãe gritar. Mas já não lhe respondi.
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"A MORTE DE PORCO" (CONTO)
Zé Varela - Abril 2018
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